«Que o teu filho viva amanhã no mundo dos teus sonhos»
Amílcar Cabral, Outubro de 1944

postal

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Andorinha cita Amílcar Cabral

Com a intenção de se lançar uma reflexão e debate sobre o uso da Língua Portuguesa na actual Guiné-Bissau, iniciamos por citar o que Amílcar Cabral escreveu sobre o assunto:
«[...] Devemos combater tudo que seja oportunismo, mesmo na cultura. Por exemplo, há camaradas que pensam que, para ensinar na nossa terra, é fundamental ensinar em crioulo já. Então outros pensam que é melhor ensinar em fula, em mandinga, em balanta. Isso é muito agradável de ouvir; os balantas se ouvirem isso ficam muito contentes, mas agora não é possível. Como é que vamos escrever balanta, agora? Quem é que sabe a fonética do balanta? Ainda não se sabe. É preciso estudar primeiro, mesmo o crioulo. Eu escrevo, por exemplo, n’ca na bai. [N’ca na bai: não vou!] Um outro pode escrever, por exemplo, n’ka na bai. Dá na mesma. Não se pode ensinar assim. Para ensinar uma língua escrita é preciso ter uma maneira certa de a escrever, para que todos a escrevam da mesma maneira, se não é uma confusão do diabo.
Mas muitos camaradas, com sentido oportunista, querem ir para a frente com o crioulo. Nós vamos fazer isso, mas depois de estudarmos bem. Agora a nossa língua para escrever é o português. Por isso é que tudo vale a pena falar-se aqui tanto o português como o crioulo. Não somos mais filhos da nossa terra se falarmos crioulo, isso não é verdade. Mais filho da nossa terra é aquele que cumpre as leis do Partido, as ordens do Partido, para servir bem o nosso povo. Ninguém deve ter complexo porque não sabe balanta, mandinga, papel ou fula ou mancanha. Se souber, melhor, mas se não sabe, tem que fazer com que os outros o entendam, mesmo que for por gestos. [...]
Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo. Assim como o homem inventou o rádio para falar à distância, sem falar com a língua, só com sinais, o homem através do tempo do seu desenvolvimento começou a falar, a necessidade de comunicar-se fê-lo começar a falar. Desenvolveu as cordas vocais, etc., até falar. E como a língua depende do ambiente em que se vive, cada povo criou a sua própria língua.
Se repararmos, por exemplo, na gente que vive perto do mar, a sua língua tem muita coisa relacionada com o mar; quem vive no mato, a sua língua tem muita coisa relacionada com as florestas. Um povo que vive no mato, por exemplo, não sabe dizer bote, não conhece o bote, não vive no mar. Por exemplo, na linguagem de certos povos da Europa, as coisas dom mar, da navegação, dizem-se como em português, porque os portugueses viviam junto ao mar. Tudo isso tem a sua razão de ser.
A língua é um instrumento que o homem criou através do trabalho, da luta para comunicar com os outros. E isso deu-lhe uma grande força nova, porque ninguém mais ficou fechado consigo mesmo: passaram a comunicar uns com os outros, homens com homens, sociedades com sociedades, povo com povo, país com país, continente com continente. Que maravilha! Foi o primeiro meio de comunicação natural que houve, a língua. Mas o mundo avançou muito, nós não avançamos muito, tanto como o mundo, e a nossa língua ficou ao nível daquele mundo a que chegámos, que nós vivemos, enquanto o tuga, embora colonialista, vivendo na Europa, a sua língua avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas, relativas, por exemplo, à ciência. Por exemplo, nós dizemos assim: a Lua é um satélite natural da Terra. Satélite natural, digam isso em balanta, digam em mancanha. É preciso falar muito para o dizer, é possível dizê-lo, mas é preciso falar muito, até fazer compreender que um satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em português basta uma palavra. Falando assim, qualquer povo no mundo entende. E a matemática, nós queremos aprender matemática, não é assim? Por exemplo: raiz quadrada de 36. Como é que se diz raiz quadrada em balanta? É preciso dizer a verdade para entendermos bem. Eu digo, por exemplo: a intensidade de uma força é igual à massa vezes aceleração da gravidade. Como é que vamos dizer isso? Como é que se diz aceleração da gravidade na nossa língua? Em crioulo não há; temos que dizer em português.
Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa terra, daqui a alguns anos, tem que saber o que é aceleração da gravidade. Não explico isso agora, porque não há tempo, temos muito trabalho. Mas camaradas, amanhã, para avançarmos a sério, não só os dirigentes: todas as crianças de 9 anos de idade têm que saber o que é a aceleração da gravidade. Na Alemanha, por exemplo, todas as crianças sabem isso. Há muita coisa que não podemos dizer na nossa língua, mas há pessoas que querem que ponhamos de lado a língua portuguesa, porque nós somos africanos e não queremos a língua de estrangeiros. Esses querem é avançar a sua cabeça, não é o seu povo que querem fazer avançar. Nós, Partido, se queremos levar para a frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português. E isso é uma honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga, ao facto de ele nos ter deixado a sua língua, depois de ter roubado tanto da nossa terra. Até um dia em que de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrado todas as regras de fonética boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo. Mas nós não proibimos ninguém de escrever o crioulo: se alguém quiser escrever o crioulo, se alguém quiser escrever uma carta ao Tchutchu em crioulo, pode escrever. Somente ele, na resposta que lhe mandar, vai escrever de maneira diferente, mas faz-se compreender. Mas para a ciência, o crioulo não serve. Mesmo em balanta, lembro-me de um camarada nosso, que infelizmente morreu, Ongo, nós escrevíamos em português, passávamos para crioulo e ele escrevia em balanta. Porque é possível escrever balanta. Uma pessoa que sabe bastante português é capaz de escrever balanta. Diz, por exemplo, Watna [Watna: vamos] ou, então, n’calossa [N’calossa: eu vou]. Eu sei escrever, mas escrevo à minha maneira; outra pessoa já escreve à sua maneira. Mesmo «djarama» [«Djarama»: obrigado!] em fula pode escrever-se com o d e j, ou pode escrever-se só com j, mas lê-se djarama porque o j no começo da palavra pode ter o valor de dj. Mas temos que arranjar uma regra primeiro. Tem que ser, camaradas, porque temos de tirar o máximo proveito da experiência de outros povos, não só da nossa própria experiência. Mas se quisermos empregara essa experiência para a utilizarmos na nossa terra, temos que utilizar as expressões doutras línguas. Ora se temos se temos uma língua que pode explicar tudo isso, usemo-la, não faz mal nenhum.
Para nós tanto faz usar o português, como o russo, como o francês, como o inglês, desde que nos sirva, como tanto faz usar tractores dos russos, dos ingleses, dos americanos, etc., desde que tomando a nossa independência nos sirva para lavrar a terra. Porque a língua é um instrumento, mas pode acontecer que tenhamos já uma língua que pode servir e que toda a gente entende. Então não vamos pôr toda a gente a aprender o russo, não vale a pena, tanto mais que temos uma língua que é o crioulo, que é parecida com o português. Se nas nossas escolas ensinamos aos nossos alunos como é que o crioulo vem do português e do africano, qualquer pessoa saberá português muito mais depressa. O crioulo prejudica quem aprende português, porque não sabe qual é a ligação que existe entre o português e o crioulo, mas se se conhecer a ligação que há, isso facilita aprender o português. [...]»
“P.A.I.G.C. – Unidade e Luta” Amílcar Cabral, Publicações Nova Aurora, Textos Amílcar Cabral / Nº 2, Lisboa, 1974, p. 246

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