«Que o teu filho viva amanhã no mundo dos teus sonhos»
Amílcar Cabral, Outubro de 1944

postal

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Canchungo II


«Parte da Avenida é um mercado todos os dias, incluindo os domingos, desde a manhã até escurecer. Existem pequenos stands de venda e em algumas casas há pequenas mercearias. Há de tudo um pouco em oferta e alguns stands ou lojas são um pouco mais especializados, como os que vendem chinelos e outro calçado leve, ou malas de viagem, ou uma grande variedade de artigos de plástico, ou redes de pesca, ou fechaduras de porta. Continuo a sentir aquele sentido de comércio: cada um tem um pouco de qualquer coisa, um pouco de amendoim, algumas beringelas, que trás e expõem, por vezes apenas no chão do que resta dos passeios, e vende.
Na primeira ida às compras, entrei numa mercearia e é o suficiente para perceber que não entendem o português. Como não sei o crioulo, procuro outras formas de me fazer entender. O homem fica pouco à vontade mas lá nos entendemos. E no final, depois de pagar, tem o gesto de ir buscar dois rebuçados que oferece com um largo sorriso! – fica na memória.

Foi logo nos primeiros dias que descobri dois recantos encantadores desta terra: o rio e as bolanhas.
Chega até aqui um braço do rio Mansoa e a sua visão descoberta é deslumbrante! Neste local forma um extenso lençol de água e custa a crer que a maré possa descer e que ficará praticamente sem água, assim como custa a crer que tão longe do mar não seja água doce mas salgada, porque o denominado rio Mansoa é um braço de mar, com as respectivas marés! Neste local forma uma curva e na outra margem oposta há um massivo de árvores baixas ou arbustos com raízes aéreas.
Um grupo de homens remendava as redes. Outros passavam remando na ré de longas pirogas; são de uma peça única, massiva, escavadas num tronco de árvore; elegantes e belíssimas. Começo a notar que há classes sociais ou profissionais bem definidas: estes são os pescadores e têm uma pose, um modo de estar, de trajar.
Nesta margem, há mulheres e crianças a britarem o cascalho. Tenho a sensação que tudo serve para ser transformado, para ser vendido, e para se tentar um parco rendimento monetário.
Do outro lado da povoação, chega-se às bolanhas, os campos alagados de arroz. O vale confere largueza ao olhar, a simetria das divisões ganham várias tonalidades de verde e ao entardecer a luminosidade confere outras policromias – há noite é como um fogo-de-artifício de pequenas luzinhas verdes esvoaçantes: são dezenas e dezenas de pirilampos!

Na mesma Avenida é a entrada para o Mercado local. No interior encontram-se dezenas de pequenas bancas, tudo acanhado, como se fosse em miniatura. Um ambiente mágico – como acho que é inerente a todos os mercados por esse mundo fora.
Representa novamente muita gente a vender. Sempre pequenas quantidades, que dispõem apresentam em pequenos montículos (três cebolas, duas cenouras, um punhado de grãos de feijão, um naco de abóbora cortada, quatro bananas-maçã, etc) porque é assim que se fazem os preços - e não ao peso. Decerto porque todas as pessoas só poderão comprar em pequenas quantidades. Todos os dias a oferta pode apresentar algumas novidades – e por isso me encanta “ter” que ir quase todos os dias ao Mercado para fazer compras!
Como se depreende, a oferta de legumes de base é boa – não aparece a alface ou a couve, podendo ser substituídas pelas folhas de mandioca ou da batata doce, mas ainda não aprendi a prepará-las. A fruta é sazonal e irá começar a do maracujá e goiaba, e ainda teremos de esperar pela da papaia e manga. A oferta de peixe é generosa, diversificada e fresca. Quanto a carne comecei pela de gazela – o que me parece um luxo! Já descobri um mercado de gado bovino e outro de suínos e caprinos, e localizei a existência de um talho no Mercado.
De seis em seis dias, o mercado da Avenida transforma-se na chamada Feira Grande. O que significa que as gentes das tabankas (aldeias) em redor vêm vender e comprar. Há mais gente, maior oferta e, por conseguinte, mais cor e ambiente mágico. Começo a descobrir o artesanato local, como os potes de barro riscado para a água, as cestas largas, as esteiras, os bancos de madeira talhados, as panelas feitas de lata amassada (em reciclagem), os panos de coloridos padrões. E as técnicas de oferta e venda também se sofisticam, sobretudo pela mobilidade: desde os miúdos que aproveitam uma caixa de papelão para colocarem um fita e andarem com o seu conteúdo a tiracolo, a carrinhos de mão que se empurram cheios de produtos, ao mais elaborado e sofisticado de todos: não conseguem imaginar a quantidade de roupa que se consegue equilibrar numa bicicleta em estendal e o rapaz montado ainda consegue pedalar devagar por todo o lado! – um feito digno de figurar como número de equilibrismo em qualquer circo e pelo quantidade de roupa transportada em mostruário numa só bicicleta, digno também de figurar no Guiness Book!» [26.10.2006]

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